WICCA


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Espaço dedicado à Wicca

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WICCA:

Wych em saxão e Wicce em inglês arcaico significam "girar, dobrar, moldar". Uma palavra radical indo-européia ainda mais antiga, Wic, ou Weik, também significa "dobrar ou moldar". A palavra "Witch" também pode ter a origem na antiga raiz germânica Wit – Saber. A palavra "Wicca", que tem a mesma raiz que "Witch" - vem do inglês antigo "wicce", proveniente da raiz saxônica "wic'" e hoje está relacionada com religião e magia. Assim: Wicca era uma palavra do Inglês Antigo (pronunciava-se 'witcha') que significava homem sábio ou xamã sendo ‘wicce’ a forma feminina.

A Wicca surgiu no período Neolítico, em várias regiões da Europa, onde hoje se localiza a Irlanda, Inglaterra, País de Gales, Escócia, indo até o Sudoeste da Itália e a região da Britânia na França. Quando os Celtas invadiram a Europa, quase mil anos antes de Cristo, trouxeram suas próprias crenças, que, ao se misturarem às crenças da população local, originaram o sistema que deu nascimento à Wicca. Foi somente na Idade Média que a Bruxaria foi relegada às sombras com o domínio da Igreja Católica e a criação da Inquisição, cujo objetivo era eliminar de vez as antigas crenças.

A religião Wicca ressurgiu com o bruxo inglês Gerald B. Gardner que impulsionou o renascimento do culto, com o nome de Wicca, juntamente com outros bruxos e bruxas, em meados dos anos 40 e 50. Após a revogação da última lei britânica sobre bruxaria, em 1954 elelançou o livro “Bruxaria Hoje”, considerado um marco para o renascimento do paganismo mundial. Ele alegou que: a religião, na qual ele fora iniciado, era uma sobrevivente moderna de uma antiga religião da bruxaria, que tinha existido em segredo durante centenas de anos, originária do Paganismo pré-cristão da Europa. A Wicca é, assim, às vezes referida como a Velha Religião, ou a Nova Religião dos Velhos Deuses.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O PROCESSO DA CURA NA CULTURA POPULAR

O PROCESSO DA CURANA CULTURA POPULAR(The process of healing in popular culture)Frei Francisco van der Poel OFM[Image]Resumo: Cultura é vida e a cultura popular do Jequitinhonha é o rico patrimônio dos pobres de lá. Na medicina popular, corpo e espírito são inseparáveis. Isto atestam os curadores, as rezadeiras, os raizeiros, os pajés, a mãe-de-santo. O mesmo fica evidente nos diversos tratamentos aqui apontados. O sofrimento humano pode ter muitas causas: quebranto, a lua nova, a espinhela caída, um osso rendido, os vermes, micróbios, o ar brabo, o alimento quente, uma praga rogada, o castigo de Deus/ do santo/ ou do orixá, o encosto, feitiço, e outros. O curador e o paciente fazem o tratamento de acordo com as causas. Para eles, os remédios, as rezas, as simpatias não se contradizem. Vamos tentar conhecer esta riqueza?Summary: Culture is life; and popular culture of the Jequitinhonha valey is the treasure of the poor. In the popular medicine, body and spirit are not separated. This attest the medicin-man and the priestess. The same is evidente in the various treatments shown here. Human suffering can have many causes: evil-eye, new moon, fallen gristle, a broken bone, worms, microbes, bad air, “hot” nourishment, an swared oath, chastisement by God/ saint/ or orishá, a shadowing spirit, sorcery, and others. The medicin-man and the pacient make a treatment acording to the causes. In their opinion, no contradiction exists between the remedies, the prayers and the “sympathies”. Let’s try to understand this treasure?Introdução: [Image]A C U L T U R A É V I D A Sou um franciscano holandês e morei no Vale do Jequitinhonha(MG) entre 1968-1978. Ainda passo por lá anualmente, para não acabar falando do passado. As pesquisas realizadas no nordeste mineiro desde 1971 deram um total de 250 fitas k7 que foram anotadas em 15.000 folhas. Até o ano 2000 morei na Colônia de Santa Isabel(Betim.MG) onde, durante 16 anos, fui o regente do coral dos hansenianos. Hoje estou em Ribeirão das Neves(MG), onde termino um dicionário da Religiosidade Popular Brasileira. Sou membro da Comissão Mineira do Folclore, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Ordem dos Músicos. Aprendi que a cultura é vida. Em termos de cultura popular ou folclore, eu diria: o povo guarda as coisas(suas cantigas, seus remédios, as técnicas de trabalho, seus provérbios, suas devoções), enquanto tiverem algum sentido na vida dele. Diz um batuque: A água do coco é doceEla é boa de beberQuem bebe a água do cocoMorrendo torna viver.(Araçuaí.MG.1975) Uns versos de um beira-mar(cantiga de trabalho dos canoeiros): Rio abaixo, rio acima, numa canoa furadaArriscando a minha vida, pruma coisinha de nada. Todo homem, quando embarca, deve rezar uma vez,Quando vai à guerra duas, e quando se casa três. Sem a menor dúvida, a cultura popular do Jequitinhonha é o rico patrimônio dos pobres. Ao estudá-lo, buscamos o significado das coisas na vida do pobre, o pesquisador não sendo pobre. Ora, isso torna o trabalho extremamente difícil e delicado. Quanto mais estudamos, tanto mais percebemos que da vida e da cultura popular não sabemos quase nada. Mas vamos à medicina popular. Em 1981, estive no hospital com câncer no intestino e peritonite. Fui três vezes operado. Fiquei por dois períodos no CTI e meu estado esteve desesperador. O médico mandou avisar meus pais para vir da Holanda para assistir o meu enterro. Perderam a viagem porque não morri. Foi bom! Eu mesmo, participando intensamente de tudo isso, tive a nítida impressão que, para o médico, eu era um corpo doente. Recebia soro, havia o controle do coração, mangueiras aqui acolá. Não sentia que tratavam de uma pessoa doente. E é esta a grande diferença do tratamento dado pela benzedeira que trata o doente com remédios, simpatias e rezas. Ela transmite uma grande paz e peleja com a pessoa. Conto esse causo pelo seguinte: Diante do tratamento dado pela rezadeira, é fácil enxergar que ela representa valores. Mas é impossível para nós imitar suas rezas, simpatias e mesmo seus remédios. Tudo isso está perfeitamente adaptado à vida da rezadeira e à dos seus doentes, mas muito diferente da nossa vida. A imitação nos levaria a uma espécie de esquizofrenia. Não se pode num momento acreditar em mau olhado, espinhela caída e encosto, e num outro momento, acompanhar a medicina moderna. O que havemos de fazer? - Pois bem, esse é um dos nossos problemas, hoje. Nos últimos dez anos tenho me dedicado à produção de um Dicionário da Religiosidade Popular: vida e religião dos pobres. Resolvi escrever um dicionário e não um manual da Religiosidade popular, uma vez que é quase impossível chegar a uma síntese sobre o assunto. Já foram feitas muitas pesquisas e vários estudiosos publicaram suas reflexões. Tudo isso já pode ser organizado num dicionário, mesmo quando há contradições e amadorismo entre os pesquisadores: historiadores, antropólogos, folcloristas, teólogos, pedagogos, médicos. O dicionário já está com 7300 verbetes e 3515 notas de roda-pé. Para preparar a presente palestra, separei todos os verbetes que dizem respeito à saúde/doença do povo e à medicina popular. Deu 108 páginas. O que seriam suficiente para escrever um livro. Mesmo assim, também no resumo apresentado aqui o problema continua o mesmo: Como chegar a uma síntese, uma coisa coerente? Só de doenças que há no meio dos pobres encontrei 158. Estão incluídos a AIDS, a leishmaniose, a hanseníase, amarelão, mas também o quebranto, o vento virado, a carne quebrado, o peito arrotado. Achei diversos tipos de curadores. Os mais variados tratamentos e remédios. Percebemos também o difícil acesso dos doentes pobres à organização oficial da saúde. A prática da medicina popular não pode ser isolada da realidade social e da história do povo portador da cultura popular. É grande a diferença entre o oficial e o popular, desde o lugar do tratamento, os nomes dados aos membros do corpo até à própria interpretação da doença e, consequentemente, à prática dos curadores. Na cultura popular, corpo e espírito não se separam em nenhum momento. Tampouco desliga-se o homem do cosmos, nem a vida da religião. Diferente também é o modo de racionalizar e falar. Enquanto nós usamos as palavras “analisar, estudar, explorar”, o povo diz: “pus aquilo no sentido”, “morei no assunto” e “fui pelejando”. No nosso mundo racional, somos muito lógicos e formamos especialistas que fazem as várias ciências se contradizerem: o padre cuida de uma parte, o médico de outra e o psicólogo de outra. O astrônomo, o jurista, e o técnico eletrônico já não tem nada a ver com a cura de doenças. A cultura popular é mais intuitiva e trata as doenças com remédios, rezas e simpatias que não se contradizem em nenhum momento. Vamos então, abrir os olhos e, a partir da realidade dos pobres, tentar conhecer a maneira de trabalhar dos curadores populares. [Image]TRILHA:1- Curadores2-Tratamentos3-Causas do sofrimentoIntervalo: Lunário4-Remédios, simpatias e rezas5-Conclusão minúscula Capítulo 1C U R A D O R E S Na cultura popular do Jequitinhonha, quem trata os doentes é o benzedor, a rezadeira, o raizeiro, a parteira, o meizinheiro. As grandes diferenças entre o curador do povo e o médico profissional explicam a desconfiança do povo frente à medicina oficial. O médico não conhece as plantas medicinais e nenhuma benzeção. Além disso, parece melhor não conversar com o doutor sobre as simpatias. Na religiosidade popular, qualquer cura é obra de Deus. Dizem: Deus cura e o médico manda a conta. As rezadeiras dizem: É Deus que cura, não podemos cobrar. Ouçamos o benzimento para mau jeito:Te curo de carne quebrada, torna te a soldar./Nervo torto torna a seu lugar./Nervo que retorceste, Deus que te põe onde nasceste./Eu que te benzo. Deus que te sare./Onde eu ponho as minhas mãos, Nossa Senhora dá santidade./Deus queira curar esta quebradura,/esta rendidura que esse pobre enfermo tem./Seja pelo amor de Deus, seja tudo. Amém.//(Ribeirão Preto.SP.1994) Alguns exemplos citados não são de Minas, mas tem variações no nosso Estado. Isso pouco importa quando a quase totalidade veio mesmo de Portugal e foi adotada e recriada aqui. Uma cura milagrosa pertence às possibilidades. Segundo várias histórias populares, o próprio Jesus ensinou orações e remédios. Como exemplos citamos as benzeções de erisipela, peito arrotado e engasgo. Também os santos curam por intercessão divina: Santa Iria, Santa Luzia, São Sebastião, São Lázaro, Santo Antônio, São Brás, Santos Reis, São Raimundo Nonato, São Bento; também os santos não canonizados: Doutor Guerra, a parteira Maria Conga, Padre Eustáquio, Padre Frei Clemente, e muitos outros. Observamos que o santo curador às vezes conhece a doença por experiência própria: Santa Luzia que perdeu a vista, cura os olhos; São Lourenço que foi martirizado no fogo, cura as queimaduras; Padre Frei Clemente morreu envenenado e é invocado contra a picada de cobra. Na medicina popular, o tratamento geralmente supõe um ritual. A cura pode ser o resultado de um exorcismo. Nas tradições afro-brasileiras e indígenas, o curador é um intermediário privilegiado entre o mundo dos homens e o mundo dos espíritos, sejam caboclos, pretos velhos ou outros. Possuído por entidades espirituais, o xamã exerce seu papel terapêutico pelo bafo sagrado. No candomblé, os orixás Omulu(“o médico dos pobres”) e Ossáin(orixá das folhas) tanto curam como podem causar doenças. Paulo César Alves tece interessantes reflexões sobre a vocação do curador no jaré: “São os caboclos(antepassados) que forçam o indivíduo a tornar-se curador, causando-lhe uma série de infortúnios até que ele resolva acatar seu destino. Praticamente nenhum curador fala da sua carreira enquanto escolha pessoal.<...> Ele é escolhido pelas divindades e essa escolha é revelada por sonhos, transes e, principalmente, comportamentos associados à loucura”.1 Tal curador não precisa de estudos, pois seu saber é revelado e o poder de cura lhe é dado pelos caboclos, segundo a ideologia local. A interpretação que o curador oferece para um determinado problema pouco se diferencia daquela dada pelo paciente. Vamos olhar de perto o raizeiro, o benzedor, a rezadeira, e o doutor. - O raizeiro: Trata-se de um homem que procura e vende as raízes medicinais, muitas já conhecidas pelo povo. Um raizeiro amigo me disse: No próprio mundo que Deus criou, tem remédio para tudo que o diabo tocou. Outr falou: Neste mundo de Deus tem tudo o que é remédio para as malartes do capeta. Além dos raizeiros que só preparam os remédios: rapé, banhos, banha, garrafada e explicam como fazer um chá, há outros que são curadores e dão olhada ou revista. Por ex.: O raizeiro Bilô(Araçuaí,MG) pede que as pessoas com doença ou outros problemas coloquem num papelzinho o nome, a idade e o incômodo. Quando vai preparar os remédios, põe a mesa para o Divino e entrega tudo a Deus que cura. Há pessoas que lhe pedem remédio para cura de doenças, para alguém parar de beber, para proteção de algum mal que está acontecendo, para as vacas darem cria e as éguas pararem de criar ou para tirar as cobras da roça. É comum hoje o raizeiro consultarem livros como: “As Plantas Curam.” de A.Balbach, 27ªEd. São Paulo, Ed.MVP, 1970; “Guia da medicina vegetal.” da A Natureza, produtos farmacêuticos em São Paulo(sem data); “Produtos Vegetais da Flora medicinal.” de Dr.J.R.Monteiro da Silva, Rio de Janeiro(sem data); “Cuide de sua Saúde.” de Jaime Brüning. 18ªEd. Cascavel, Assoeste, 1990. - Temos também os benzedores homens e mulheres. Há três elementos essenciais para compreender o povo e o benzedor: a fórmula da bênção, a fé na cura que é dom de Deus e a confiança da comunidade no curador. - O benzedor tem que saber as orações. Uma benzedeira disse: Quem troca as rezas é desastroso igual o médico que troca os remédios. Mas, ao mesmo tempo, afirma que diante do doente, não sabendo a fórmula certa, qualquer palavra resolve, rezando com fé. - A cura é pela graça de Deus. Pela bênção do rezador, o doente sara. Às vezes, o benzedor sugere o uso de algum remédio. Mas ele “não cobra, senão estaria fazendo negócio e é Deus que cura”. - O benzedor é procurado por pessoas da sua comunidade. Quando o benzedor morrer, as pessoas procuram outro alguém que possa curar a picada de cobra, a espinhela caída, o quebranto. É a comunidade que faz o benzedor.- O benzedor homem é procurado em especial para rezar em ofendido de bicho mau, para ir tirar cobras de uma fazenda, para estancar sangue, para curar bicheira e outras coisas. Mesmo assim, rezar em bicheira de animal qualquer pessoa de fé pode fazer.- A rezadeira ou benzedeira reza em quebranto, e outros incômodos das crianças. Também em carne quebrada, fogo selvagem e muitas outras coisas de que sofrem os adultos. Não vemos rezadeiras falar em “dons paranormais”. - A rezadeira se moderniza. Além das plantas medicinais e das simpatias, pode até sugerir algum remédio que ela conheceu na farmácia. Pode aprender alguma reza nova. – A rezadeira conhece a família do doente. - O que dizer do médico, o doutor? Secularmente, a arte de curar esteve ligada ao sacerdócio e ao culto, e ainda continua assim em diversas culturas. - Muitos dos nossos médicos não professam uma religião, mas mesmo os que são católicos não tem costume de rezar no consultório. – Outra coisa que nos preocupa é a função social do médico: O doente pobre e subnutrido procura o médico com queixas de dor de cabeça e de barriga. O remédio havia de ser o feijão. Qual o papel do médico numa sociedade que não valoriza o trabalhador e mantêm uma injusta distribuição de renda e de terras? Lembrei do desabafo de um médico cujo nome me esqueci: “Quando trato os ricos me sinto um lacaio, quando trato dos pobres me sinto um ladrão”. Problema semelhante encontram o padre, o psicólogo e outros profissionais. Uma coisa é certa: pouco adianta tratar o doente e devolvê-lo à sociedade doente. - Outra dificuldade do médico é a relação interpessoal com o doente. Pela universidade, o médico torna-se um profissional especialista que dificilmente conseguirá manter um contato pessoal com os seus muitos pacientes que vem de todo lugar. Talvez esta relação seja possível no sistema do médico da família. Por enquanto, vemos um desencontro que é reforçado porque o doente pobre do Jequitinhonha acha difícil acreditar no médico que não reza e que pratica uma medicina que o doente não compreende. Acredita mesmo é no rezador e no curador. Vejam alguns versos sobre o rezadô Zé Reimundo:2Seu Doutô, eu nun lhe engano,eu tenho mais de trinta anoqui moro nesse lugá.Dou-lhe a palavra de home,se nun qué morrê de fome,vá vivê na capitá. A coisa aqui tá isquisita,povo nun aquerditaim receita de dotô.Já é custume da gente,quando arguém istá duente,chama logo o rezadô. Cum a fé no coraçãoe três gáio de pinhãotrês vez rezano incruzadolhe garanto, Zé Reimundodêxa quarqué muribundobonzinho, forte e corado! Panariço e sete côro,firida braba e friêra,murdidura de bisôro,má de izipra e cocêrae tudo quanto é firida,dô de ispinhela caída,garganta inchada e papêra. Cum êle nun tem gogó:Essa história de agunia,quebranto, oiado,três-só, injôo e manicunia,Sarna, bixiga e sarampo,ligêro como relampo,cura da noite pru dia. Purisso qui o pessuásó precura Zé Reimundo!Ele aqui nesse lugá,é premêro sem segundo!Inquanto hové rezadôninguém liga pra dotô,nem que venha do ôto mundo! Pois o próprio Zé Reimundo,no tempo que aqui chegô,mostrava pra todo mundoseu diproma de dotô!E quaje morre de fome!Precisô mudá de nomee trená pra rezadô![Image] Seja como for, é preciso conhecer as culturas dos pobres e seus valores. Médico tem que ser competente, senão, leva o título de “barbeiro”. O que, aliás, tem tudo a ver com a história da medicina. [Image]Capítulo:2TR A T A M E N T O S : Na medicina popular de origem européia, encontramos elementos celtas, grego-romanos, árabes, juntamente com partes da cabala, da alquimia, da medicina dos mosteiros e dos cirurgiões práticos. Acrescentam-se a isso rituais e remédios que vem da medicina indígena e da medicina africana, isto é, elementos banto e nagô. Neste momento, quero lembrar duas coisas: - Simplesmente não é possível falar de todos os tratamentos populares. – Por isso, vamos dar uma grande lista de exemplos para mostrar com respeito uma grande riqueza. No entanto, não queremos apelar à ignorância. Na medicina popular encontramos: chá de raízes, folhas, flores, cascas, sementes; tomam cachaça com raízes, ou mesmo com uma lagartixa torrada; tomam caldo de meleto e de mocotó; há o banho com plantas medicinais ou com bosta de boi que é bom para a pele; fricção com cachaça ou álcool e “alcanfor”, cobra, escorpião; inalação da fumaça de certa resina sobre brasa contra dor de cabeça; fumam cigarro de folhas, flores ou o cigarro contendo um espinho de ouriço caixeiro; barreiam o peito com lama da casinha da vespa “maria-barreira”; usam banha de jibóia, carneiro, galinha; pingam colírio de arruda nos olhos e sumo de saião nos ouvidos; urinam numa ferida fresca para estancar o sangue; fezes humanas quentes servem para tirar espinho ou levar a furo um furúnculo; colocam folha de fumo na barriga contra a dor e esquentam uma metade de laranja-da-terra na chapa do fogão para colocar na cachumba. Há também o costume de tomar a medida do corpo do doente, soprar o doente de cima até em baixo, pôr um galhinho de arruda atrás da orelha, costurar uma minúscula imagenzinha de Sto.Antônio dentro da pele, carregar um patuá ou uma medalha ao pescoço, pôr uma garrafa com água na cabeça para tirar-lhe o sol. Além de, batizar de novo, passar óleo de Bom Jesus de Congonhas, benzer com três raminhos, beber um copo de água que foi bento durante um programa de rádio. Em certos momentos, a cura é feita no rastro da pessoa ou do animal. Algumas moléstias são ferradas na Sexta-feira da Paixão. Vemos curadores costurando uma linha logo acima de uma carne quebrada. Outros curam, fazendo perguntas e exigindo respostas. Há procedimentos que buscam transferir para animais, vegetais e mesmo pedras as doenças que aparecem no homem. O povo tem esperança de livrar-se de febres, doenças de pele, úlceras, amarrando panos que tiveram contato com o corpo do doente em árvores como a gameleira, a pereira, o juazeiro, o cardeiro. Há os que benzem, antes do nascer do sol. Outros conversam com a lua. Registro o costume de amarrar um cordão de orações no corpo e de oferecer no santuário o peso do corpo em cera. Existe também o banho de cheiro. Uma vez que é melhor prevenir que remediar, muitos realizam rituais para fechar o corpo.[Image]Para aproximar-nos mais do universo da medicina popular vamos observar alguns poucos tratamentos específicos: AJUDAR A MORRER Quando a doença se prolonga indefinidamente, o povo comenta que o doente está tão fraco que não tem forças para morrer. Às vezes é preciso ajudar o doente a morrer. Usam passar sebo nas frontes ou dão de beber vinho de missa, leite de peito, ou caldo de sebo. Às vezes, quando o doente está endiabrado, com o espírito atormentado, resolvem até batizá-lo de novo. Outros rezam as palavras ditas e retornadas da oração do Anjo Custódio. Existe um emplastro para ajudar a morrer. Quando o doente está mal, completando as horas mas não morre por falta de força, faz-se um emplastro de ovo batido misturado com farinha de trigo e vinho e se coloca sobre o estômago do moribundo. Tudo isso é considerado uma obra de caridade.3 BICHEIRA Ferida causada por larvas da mosca varejeira. Quando um animal tem maus, isto é o verme da bicheira, é possível curar no rasto. Basta passar um ramo verde sobre o rasto do animal. Outros cobrem o rasto com uma pedra. Também pode bater com uma pedra em três rastos do animal. Getúlio César registra a seguinte oração: Maus que come, não se logra; quem come e não reza, não se salva. Oficial de justiça não se salva; delegado não se salva; promotor não se salva; juiz de direito não se salva e muitos padres colados não se salva. E assim, caia de um em um, de dois em dois, de três em três, de quatro em quatro, de cinco em cinco, de seis em seis, de 7 em 7, de 8 em 8, de 9 em 9, de 10 em 10, de 11 em 11, de 12 em 12, de 13 em 13, caia de um em um, não fique nenhum. Amém.4 Outras rezas contra bicheira: Assim como o trabalho no diaDomingo não põe ninguém pra diante, será também os bichos desta bicheira. Há de cair de nove a nove, de sete a sete, de cinco a cinco, de três a três, de um a um até ficar nenhum. Rezar 3 vezes. (GO). Mal que comeis a Deus não louvais! E nesta bicheira não comerás mais! Hás de ir caindo: de dez em dez, de nove em nove, de oito em oito, de sete em sete, de seis em seis, de cinco em cinco, de quatro em quatro, de três em três, de dois em dois, de um em um! E nessa bicheira não ficará nenhum! Há de ficar limpa e sã como limpas e sãs ficaram as cinco chagas de Nosso Senhor! Fazer uma cruz no ar.(CE). Um remédio usado contra bicheira é o pó de café. BRONQUITE. Simpatia: três anos em seguida, na Sexta-feira Santa, levar a criança doente de manhã cedo no curral. Levanta-se algum boi deitado e coloca a criança no mesmo lugar quentinho onde o boi deitou.(Araçuaí.MG) A bronquite asmática, chamada estalecido, é curada com simpatia(uma formiga-onça costurada viva num patuá) e o remédio(óleo de tanajura). BROTOEJA ou BROTOEJO Erupção na pele de criança recém-nascida. Em MG, para tratar de brotoejo, coloca-se um pedaço de caco de telha no fogo até ficar vermelho e coloca na água de banho da criança. CARNE QUEBRADA Luxação, torcedura numa parte do corpo. Em todo o Brasil, benze-se cosendo com uma agulha um novelo de linha. Dizem coser de jeito. A rezadeira pergunta ao doente: Que é que eu benzo? Resposta: Carne quebrada, nervo rendido, osso partido. Repetem tudo 3x. Outra bênção pra coser carne quebrada: Cristo nasceu; Cristo ressuscitou. Emendai esta carne, este nervo, este osso que aqui me quebrou. Benzer em cruz(MG). A rezadeira Luiza Teixeira Ramalho em Araçuaí(MG), ensina um remédio:coloca uma papa de limão com sal; depois passa azeite doce para não dar izipa. É para juntar a carne e para encanar o sangue.(1994) COBREIRO Na medicina: Herpes-zooster. Doença dolorosa da pele. Mancha de bolhas doloridas. As orações falam da cabeça e do rabo desta mancha. O cobreiro vem de aranha, lagartixa, sapo e todos os animais que tem peçonha. Quando estes bichos passam em cima das roupas estendidas no quintal pode largar o cobreiro. Por isso, não se deve vestir as roupas lavadas sem passar o ferro quente que mata o veneno. Há diversas maneira de curar: uns fazem cruzes com tição de fogo por cima do cobreiro; outros passam um ferro quente num pano que por sua vez é colocado quente no cobreiro; uns cosem ritualmente com agulha e pano. Todos fazem alguma bênção. Em MG, encontramos oração semelhante: O que corto? cocho, cochão, sapo, sapão, lagarto, lagartão, todo bicho de emanação para que não cresça, não apareça, não ajunta o rabo com a cabeça. Santa Iria tinha três filhas, uma lavava, outra cosia, outra pela fonte ia. Perguntou Santa Maria: cobreiro brabo com que curaria? Com um Padre-Nosso e três Ave-Maria, oferecidas às almas benditas que me auxilie nesse momento. Pede a presença do Pai Conguinho, Dr.Randolfo Soares e Nossa Senhora Aparecida.5 Em Cariranha(BA), a Dona Irene risca com caneta em volta do cobreiro e escreve Maria, valei-me. Ela explica: Se não cortar o cobreiro, ele dá a volta naquela parte do corpo e a pessoa morre.6 Outra rezadeira diz: Quando Jesus andava pelo mundo, encontrou São Pedro sentado numa pedra fria. - Que tem, Pedro? - Cobreiro bravo. - Curai, Pedro. - Com que, Senhor? - Com água da fonte, raminho do monte e as três pessoas da Santíssima Trindade Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.(Divinópolis.MG) Sumo do tronco da banana-de-São-Tomé é usado como remédio contra cobreiro. DOR DE OUVIDO Contra a dor de ouvido existem remédios e a reza que começa com as palavras:Detrás das tabinhas, onde estava o Senhor escondido, pelo furto da galinha sara essa dor de ouvido.(Cf.Is.58,7-8) Para entender esta reza havemos de conhecer a história que Ana Pereira conta: Jesus quando andou no mundo, andava como um velho que pedia esmola. Certo dia chegou na casa de uma dona que preparava uma galinha para o almoço. Aí, o velhinho, que era Jesus, pediu um prato de comida. A mulher viu que ele estava com fome, mas disse: Não posso dar porque meu marido está perto de chegar e ele não quer que ajudo ninguém. É muito ciumento. O velhinho respondeu: Não se preocupe. Pode dar, não faz mal. Na mesma hora que o velhinho recebeu o prato, o marido chegou na casa. Jesus se escondeu com o prato atrás de umas tábuas. Mas o marido perguntou logo pelo homem que havia entrado e arrumou uma briga feia com a esposa. Jesus aproveitou para sair. O marido ainda disse para a mulher: Você roubou um pedaço de galinha. No momento que ele falou assim, sentiu uma forte dor de ouvido que não queria parar. Aí, a dona mandou um menino atrás do velhinho para perguntar se ele não sabia alguma reza para benzer dor de ouvido. Então Jesus ensinou as palavras: “Detrás das tabinhas, onde estava o Senhor escondido, pelo furto da galinha sara essa dor de ouvido”. A mulher rezou três vezes no marido e ele sarou.(São Paulo.SP.,1981) Faz uma cruz no ouvido e reza AM. Tudo três vezes. A história normalmente não é contada. Remédio: banha de traíra; sumo de saião. Esta oração tem grande semelhança com a oração contra o engasgo. MAL DE SIMIOTO Doença que faz a pele grudar nos ossos. O doente fica com a feição de macaco(=símio). A rezadeira Jacomina(1994) de Ribeirão Preto(SP) cura com óleo de oliva. Deita o doente de bruço com os braços deitados sobre as costas. Esfrega o óleo simultaneamente do pé da perna esquerda até à cintura e do ombro do braço direito até à mão, depois na perna direita e no braço esquerdo. É tratamento “encruzado”. Com muita paciência trata sobretudo as juntas. Depois vira o corpo de barriga para cima e depois sopra 3 vezes de cima até em baixo, reza 3 PN e 3 AM e oferece ao Santo Sepulcro de Jerusalém. [Image]Capítulo: 3C A U S A S D O S O F R I M E N T O : Um princípio importante nos ajuda a melhor entender a medicina popular: A doença tem uma ou várias causas. De acordo com a causa é que o doente busca e o curador sugere o tratamento. ALGUMAS CAUSAS DOS GRANDES SOFRIMENTOS DOS POBRES: ABORTO é a quinta causa da mortalidade feminina no Brasil(1993). Mais morrem as mulheres carentes. ACIDENTE DE TRABALHO O Brasil é considerado o país campeão do mundo em que ocorre o maior número de acidentes de trabalho em relação ao número total de trabalhadores, sendo a construção civil a atividade mais afetada. Causa: o desprezo do patrão pelo trabalhador e a ganância do rico. ALCOOLISMO Depois do câncer e doenças do coração, a doença do alcoolismo vem como terceira causa de morte. DROGA A atual crise de identidade cultural, a crônica incapacidade dos governos de solucionar os problemas sociais, a desestruturação familiar e certa decadência da religião são algumas das causas do uso patológico das drogas. SUBNUTRIÇÃO A pobreza, responsável pela falta de alimentos, é a principal causa da fraqueza. Principal causa da mortalidade infantil. “Mais de trinta milhões de brasileiros passam fome. Quase 70% da população não se alimenta suficientemente para ter saúde(1993).”7 Essa massa faminta se formou nos últimos 15 anos e é resultado de uma constante recessão e da falta de políticas públicas. POLUIÇÃO Assunto ligado à saúde pública. VERMINOSE Muito comum no Brasil e causado pela falta de higiene e de saneamento básico, pela miséria e desinformação do povo.
CAUSAS APONTADAS PELO POVO: AGOURO (AGOIRO) Diversas coisas são proibidas por agourar a mãe. SOPRO Soprar no pó é sinônimo de feitiço. Dizem: As coisas da macumba vem pelo ar. URUCUBACA, ENCANTAMENTO, COISA FEITA e FEITIÇO e FÓRMULAS MÁGICAS Obra de fada, bruxo ou feiticeiro. Por sua ação mágica e seu poder sobrenatural, um monstro pode ser um príncipe encantado. MANDAR O mal que nos aflige pode ser um mal mandado. PRAGA Rogar praga pode causar uma doença ou o atraso. MAU-OLHADO ou OLHO RUIM Energia negativa que faz o outro adoecer de quebranto principalmente crianças. FUMAÇA Trabalho feito pelo mestre do catimbó. Fumaça às direitas indica todo o trabalho para o bem, cura de doença, conselho, desmanche de feitiço, oração de proteção. Fumaça às esquerdas é o trabalho para o mal, desmanchar casamento, causar doença, atrapalhar negócios. ESPÍRITO MAU e ENCOSTO Causa: um espírito mau e os vermes de doentes, possessos de demônio ou encosto. Precisa de exorcismo. VONTADE DE DEUS ou Castigo. Pode ser obra de algum santo malino, quando o povo não cumpre a promessa feita. OMOLU ou OMULU Na Bahia, o “orixá da peste e da bexiga” tem o título de médico dos pobres, mas pode assustar os humanos. Na umbanda, Omolu é divindade da lepra e da peste. OSSÁIN ou OSSÃE O orixá, senhor das folhas medicinais e rituais, também as venenosas. LUA NOVA A lua pode endoidar e influencia a menstruação das mulheres. SOL As orações contra dor de cabeça pretendem tirar o sol da cabeça. AR BRABO, MAU AR e MAL-DE-VENTO-EXCOMUNGADO O mesmo que ar brabo, ar estupor, moléstia do tempo. Cortam o vento colocando uma tesoura aberta, isto é em forma de cruz. Poderia trazer coisa ruim(doença, coisa mandada). CALOR DO FOGO Os que lidam com o calor do fogo correm o risco de pegar uma constipação quando ao mesmo tempo se expõe ao frio da chuva ou do vento. É uma espécie de derrame cerebral ou congestão. Também chamado ar-estupor.MOSCAS e MOSQUITOS causam bicheira, dengue, malária. CAUSAS DA CEGUEIRA: catarata, glaucoma, varíola, sarampo, diabete. VENENO: Cobreiro vem de aranha, lagartixa, sapo e todos os animais que tem peçonha. Picada de cobra. BACILOS: causam cólera e hanseníase. MICRÓBIOS: causam a doença de chagas. O termo moderno entrou numa oração da tradição oral contra dor de dente: Santa Apolônia, que por amor de Jesus fostes martirizada, dizei comigo estas palavras, fazendo comigo o sinal da cruz sobre o lugar dolorido. † Por minha ordem afasta-te, mal. † Se for uma gota de sangue, secará. † Se for um verme ou micróbio, morrerá. Assim seja. Rezar um Creio em Deus Pai.8 PARASITAS causa a esquistossomose. VERMES causam dor de dente. ARROTO DA CRIANÇA NO PEITO DA MÃE deixa o peito arruinado.OUTRAS CAUSAS: OS HUMORES DO CORPO: Segundo as antigas teorias dos humores do corpo, o desequilíbrio dos fluidos causava doença. As doenças podem ter três causas. A primeira depende da vontade humana: alimentação, tipo de trabalho, descanso, relações. A segunda está no clima, mudança de temperatura, ventos, estação do ano. A terceira consiste em fatores hereditários. Em caso de doença, supõe-se que todo homem possui uma força curadora que promove o equilíbrio dos humores. QUATRO ELEMENTOS: Terra, água, ar e fogo. O antigo livro do “Lunário Perpétuo”9 elabora as ligações entre os quatro elementos, as quatro estações, as qualidades: quente,frio, seco e úmido, e os quatro humores: sangue, fleuma, melancolia e cólera. Para entender a cultura popular precisamos lembrar-nos sempre dos quatro elementos e da influência cósmica. A doença (a dor) é soprada; dor e febre (calor) são mandados para a água: o fundo do mar, para tirar o sol da cabeça põe-se uma garrafa d’água na cabeça, em nome de Deus. Os quatro elementos aparecem nas orações populares contra queimaduras. RESUMINDO E RETOCANDO AS CAUSAS: Mesmo não separando vida e religião(profano e sagrado), o povo sabe muito bem a diferença entre remédio e reza. - Uma esconjuração ou um exorcismo visa afastar um espírito mau, o demônio, um encosto ou alguma outra causa espiritual.- Outras orações pedem a Deus e aos santos para os remédios funcionar, ou para mostrar misericórdia e abrandar um castigo. - Apertar, puxar, endireitar servem para pôr um osso rendido, uma espinhela caída ou uma arca no seu devido lugar. - Fazer sangria, dar purgante, banhar podem buscar o equilíbrio dos humores do corpo. - Simpatias e amuletos tentam atrair as influências favoráveis do elemento mineral, vegetal, animal e mesmo cósmico. - Plantas medicinais corrigem o mau funcionamento algum órgão do corpo. Antibióticos eliminam bacilos e micróbios, segundo o povo. - Em muitas doenças, as causas e os remédios são vários. A bênção juntamente com o remédio visam salvar o doente como um todo. NOTA: CAUSAS NA MEDICINA INDÍGENA O médico Marcos A.Pellegrini, narra a tragédia dos yanomami no seu livro “Wadubari”. Segundo o autor, a medicina ocidental combate a causa instrumental das doenças que no caso da malária é o ‘plasmodium’. Pela lógica médica indígena, para combater a malária deveria-se lutar contra a sua causa última, que é a ganância dos garimpeiros pelo ouro.10 [Image]LUNÁRIO PERPÉTUO (Verbete do “Abecedário da Religiosidade Popular, vida e religião dos pobres no Brasil”, de Frei Francisco van der Poel e Lélia Coelho Frota. 2001, no prelo.) Livro conhecido na Rel.Pop.brasileira, cujo título completo é "O non plus ultra do Lunário e Prognostico perpétuo geral, e particular para todos os reinos e províncias." Composto por Jerônimo Cortez Valenciano. Emendado e traduzido em português por Antonio da Silva Brito. Lisboa, Typ.de Matias José Marques da Silva, 1858. A primeira edição em português é de 1703. • Na edição de 1757, consta: - "Emendado conforme o Expurgatório da Santa Inquisição e traduzido em Português por Antônio da Silva Brito". • Segundo Julio Caro Baroja, a primeira edição em Espanhol saiu em 1594. E em 1494, já existia em Barcelona o “Lunari i Repertori del Temps” de Bernardo Granolach.1) • Trata-se de uma obra importante e curiosa que resume e explica de modo popular os conhecimentos do mundo na era que antecede o surgimento das ciências modernas. Nela não há separação entre vida e religião.• O Lunário conta o ano por luas. Começa tratando das divisões do tempo e do mundo. Mostra a importância dos quatro elementos e dos astros(signos, planetas, sol e lua). Dá ensinamentos sobre plantas, árvores, animais, e sobre a vida dos homens e dos povos em cada mês, e sobre todos os planetas. Fala dos quatro humores do corpo. Dá atenção especial às idades da lua, suas conjunções com os signos do zodíaco e seus efeitos sobre o mar e sobre a produção dos mantimentos. Explica o que os signos tem a ver com o destino dos homens e das mulheres. Fala dos eclipses. Faz prognósticos sobre o tempo para todo sempre. Dá orientações práticas sobre purgas, sangrias e ventosas. Dá explicações sobre saúde e doenças. Relata sinais de peste, de terremotos, de carestia; sinais de chuva, vento e seca. Ensina muitos remédios. Dedica algumas páginas ao Responso de S.Antônio e ao Agnus-Dei. • O Lunário já foi muito usado no Brasil. v.Folhinha de Mariana. Ainda se encontram exemplares do lunário entre o povo. A expressão: -Tem coisas que no lunário não tem, significa raridades.2) • O "Lunário e Prognóstico Perpétuo" de Jerônimo Cortêz Valenciano continua sendo editado em Portugal pela Editora Lello e Irmão, porém "reformado e muito acrescentado". Por ex.: na edição de 1980, corrigiram todos os cálculos dos tempos e conjunções da lua que andavam afastados da verdade. Também colocaram muitas novidades úteis e divertidas. Ao mesmo autor é atribuído um livro chamado "Fysiognomia e vários segredos da Natureza"(Lisboa, 1699). • Outro lunário encontramos no Repertório dos Tempos(1593). • Verbetes afins: v.Astrologia. v.Secular Livro da Bruxa. _______________________Nota 1: BAROJA, Julio Caro. Verbete: - “Lunario”. In: BARRIENTOS, Joaquín Álvarez. et allii. Dicionario de Literatura Popular Espanhola. Salamanca, Ed.Colegio de España, 1997. p.197. Nota 2: MOTA, Leonardo. Adagiário Brasileiro. Belo Horizonte: - Itatiaia; São Paulo: - Ed.da USP, 1987. p.217. [Image]Capítulo: 4.R E M É D I O S, S I M P A T I A S E R E Z A S R E M É D I O SO remédio que resolve problemas graves é chamado um “santo remédio”.Dizem também: Deus querendo, água do pote é remédio.A: - P L A N T A S M E D I C I N A I S :São administradas em chás, garrafadas, xaropes, cheiros e defumadores, em banhos e em banhas. - É bom lembrar que não só raizeiros conhecem raízes, sementes e folhas. Todos conhecem e usam as plantas medicinais: quebra-pedra, boldo, carqueja, hortelã. Especialmente, o conjunto das mulheres de uma rua ou bairro cultiva o conhecimento das plantas. Quando alguém adoece, as comadres conversam. Uma sabe o que é bom, outra sabe onde cresce. Vão aqui aqui apenas alguns exemplos do uso das plantas e sem nenhuma garantia da parte do autor deste artigo. AGONIADA Planta medicinal para tratamento das doenças do útero, dos ovários, da asma. Cura corrimentos. ANGICO Planta medicinal. Misturado ao olho-de-goiaba e à casca do pajeú, é usado como remédio contra veneno de cobra(BA,médio São Francisco). ASMA Remédio contra asma: Toma-se três raízes de erva cidreira(socadas) e três casas de “Maria Barreira”(marimbondo). Depois de tudo fervido e coado, tomar o chá. CAJU Como remédio, o caju é bom para tosse de cachorro, depurar o sangue, contra escorbuto, afta, cólica intestinal, males dos rins. A cinza serve para dentifrício. A casca, boa para tirar cansaço. O óleo da castanha é útil para desinfetar e para verme no intestino, ajuda na cura de eczema e de hanseníase, cicatriza verruga e úlceras. O suco da fruta, entre outras coisas, é bom para tratar diabetes, sífilis, icterícia, dores de mulher. CAPIM-AÇU É bom para o pulmão e cura coqueluche, que chega a prejudicar as vistas da criança. Usam o sumo do capim-açu com leite de égua. É um remédio quente. Também levar a pessoa para dentro do rio de manhã cedo e mergulhá-la três vezes dentro da água. Existem ainda as simpatias para curar coqueluche: casinha de “Maria Barreira”. O governo promove a vacinação preventiva e obrigatória. GUINÉ Planta medicinal, mas fedorenta. A raiz é remédio fino, diurético, depurativo do sangue, traz alívio na dor de dente, e é abortivo. Guiné na cachaça de uso externo é bom para reumatismo. Doses elevadas podem levar à morte. Defumatório de folhas de guiné nas sextas-feiras às portas das casas ou dentro delas é usado como preservativo contra mandingas e coisas-feitas. Há figas esculpidas em guiné, e Santo Antônio de Guiné. A COLHEITA DAS PLANTAS MEDICINAIS Há plantas que, por mistério, apenas aparecem em determinada hora ou dia. Há plantas que ganham mais força quando são colhidas no dia de certo santo, por exemplo na noite de São João ou em Sexta-feira Santa. O curador em busca de plantas medicinais poderá pedir licença: Deus te salve, laranjeira que venho te visitar. Venho te pedir uma folha para nunca mais voltar.11 Segundo os raizeiros, há plantas encantadas que só são encontradas após certas cerimônias. O mesmo existe na Angola. - É costume plantar para o uso medicinal, um pouco de alho, fumo, arruda, na Sexta-feira da Paixão(o dia da salvação). É impossível separar a planta medicinal da religião. A própria rezadeira benze e ensina as plantas. Há muitas plantas com nomes religiosos: espinheira santa (Neutraliza o ácido, por isso é boa contra úlcera no estômago. O suco cura até bêbados. Encontrada na região de São Paulo ao Rio Grande do Sul.) malva-de-São-Francisco, São-Caetano, Santo Inácio, Vassourinha de Nossa Senhora, raiz-do-Espírito Santo, etc.. B: - O U T R O S R E M É D I O S BANHA Pomada da medicina popular. Exs: banha de jibóia é boa para reumatismo; banha de capivara para zoeira nos peitos; banha de canela da ema para surdez; banha de galinha é bom para perebas e tumores; banha de jacu é usada na asma e chiadeira do peito; banha de porco desinflama panariz e, derretida na pinga, cura embriaguez. Banha de traíra cura dor de ouvido. CORDÃO UMBILICAL É guardado e usado para remédio: chá de cordão é usado contra epilepsia. CREOLINA Remédio caseiro contra a malária e dor de dente. Num gargarejo, cura dor de garganta. Umas gotinhas no café da manhã curam a gripe. Na água do banho, para curar caruara, frieira e feridas e ficar com a pele lisa. Ela pura cura bicheira. RISCADO DE CINZA Cura empazinado. Barriga doendo, porque cheia de gaz. Remédio: riscado de cinza de fornalha. Beber a água e passar a borra em cruz no umbigo. Observamos a não-separação de remédio e reza. LEITE MATERNO Usado como colírio. PEDRA-DO-BUCHO O mesmo que maçã, benzoá, bezoar. Trata-se de uma bola compacta de pelos(tricobenzoar) ou vegetais, formada no estômago dos ruminantes. É usada, entre outros, contra a lepra(no Vale do Jequitinhonha.MG). PICUMÃ ou PUCUMÃ Fuligem do fumeiro, às vezes usado em remédios e para curar o umbigo de recém-nascido. RAPÉ Pó de fumo de rolo, torrado e moído. Dor de barriga de menino é curada com três cruzinhas de rapé em cima do umbigo. Há também o rapé de emburana macho.O povo distingue: remédio fino, remédio fresco e remédio quente: REMÉDIO FINO Provoca suadouro. Por isso o doente não pode se molhar na água fria de chuva ou banho. Remédios finos: (Alguns exemplos) - Gendiroba (torrada e moída) tomada sem dieta, um baguinho só, é bom para dores de cólica e de estômago; (Com sebo) pomada contra dores de reumatismo. - Guiné (raiz na pinga) bom para dor e reumatismo. Contra mordida de cobra. - Pau-de-ovelha (muqueca quente) bom para reumatismo e dor. - Folha da negra-mina (folha amarrada na cabeça) bom para dor de cabeça e ar-de-estupor. - Alho (chá) contra dor de dente. - Jalapa (doce de jalapa) contra vermes. REMÉDIO FRESCO ou FRIO O remédio fresco, chá fresco, refresca o corpo por dentro. Cura mau-estar da vista, dos rins, fígado e intestino. Remédios frescos: açafroa, quina, quebra-pedra, salça, jalapa, picão, poejo, peroba rosa, tiuzinho, limão, folha de abacate, água-da-colônia (raiz), cipó-de-São-João (raiz), pimenta malagueta, tomate, limão e caju. Folha de caju (folha seca?) cozida e adoçada é ótima. REMÉDIO QUENTE O remédio quente põe a doença e o calor para fora do corpo. Usado nas doenças Sarampo, febre, catapora, coqueluche, bixiga, gripe, asma, e outros. Remédios quentes: carro santo, pimenta-do-reino, raiz de fedegoso, cravo, amendoim, alfavaca, unha danta, sabugueiro, gengibre, agrião, hortelã, limão (assado), laranja tanja, levante, anador da farmácia e outros. Alguns destes são remédios finos. O remédio quente incomoda o fígado, os rins e o intestino. [Image]S I M P A T I A S : Entre remédios, rezas e simpatias, o remédio e a reza são os mais fáceis de definir. A simpatia, como elemento menos racional, é mais difícil de entender. Não é um remédio nem uma medalha. A própria palavra simpatia já sugere um coisa que não se explica. Vejamos: uma criança não caminha bem. A mãe pega na teia de aranha aquele bolinha amarela que é formada pelos ovos da aranha, e esfrega-a na perna da criança. Que é isso? Alguém poderia dizer: Ali tem cálcio, tem proteínas, fazendo assim da simpatia um remédio. Está errado! Observem: a aranha caminha que é uma beleza. A mãe passa os ovos da aranha na perna da criança imaginando que a agilidade da aranha passe para a criança. É isso aí. Outros banham a perna da criança com chá de pé de veado, pelo mesmo motivo. Criança gaga bebe água da campainha do altar. Esperam que o som desembaraçado da campainha que faz todos levantar e ajoelhar na igreja, passe para a criança. Mas como pode? Não sei. Eu já não disse que as simpatias não se explicam! Os exemplos que dei, ainda parecem ter alguma lógica. Outros não tem nenhuma. Há simpatia de amor, de boa sorte, para ganhar no jogo. Há simpatias que a pessoa envolvida não pode saber. Outras a própria pessoa faz. Na medicina popular, as simpatias servem para curar verrugas, hemorróidas, asma, epilepsia, soluço, para o cabelo crescer, para não secar o leite materno, na hora do parto e para sair a placenta. Muitas vezes aparecem em conjunto com remédios e rezas. Há simpatias de prevenção: por ex., para fechar o corpo. A palavra ‘simpatia’ vem do grego, “sentir juntos o mesmo”. Parte fundamental da medicina popular, as simpatias vem de tempos remotos. Um médico suíço do séc.XVI, Paracelsus, julgava necessária a “antiga arte de fazer uma simpatia com a doença”. Esta prática parece ter vindo do antigo Egito. A simpatia revela uma diferença entre a terapia puramente intelectual e outra pelo curador que conhece a doença por experiência própria e que peleja com o sofrimento dos outros. O amuleto é uma espécie de simpatia. Embora a simpatia não se explique, o funcionamento da simpatia supõe alguma relação íntima entre homens, animais, plantas e planetas. A intuição desta profunda união não leva em conta as leis de causa-fim. Por ex.: para secar o leite materno a mulher põe ao pescoço um cordão de talos da mamona. Fazendo uma simpatia, as pessoas buscam na ação a concretização de um desejo. O uso das analogias para encontrar remédios é antiquíssimo. Mas foi Paracelso(1493-1541) que elaborou um sistema lógico a respeito. Seguem mais alguns poucos exemplos tirados da medicina popular: EMPELICADO ou APLICADO Diz-se da criança que nasce coberta por uma película. Nasceu empelicado quer dizer, nasceu para ser feliz e ter boa sorte. Alguns colocam a película, depois de seca, como simpatia no travesseiro da criança, sem ser revelada.(Araçuaí.MG.1991.) HEMORRÓIDAS Também chamadacaseira. Existem orações e simpatias para tratá-las, como sentar-se no couro do bicho preguiça. Usam banhar com erva-de-bicho. Colocam o pó da pele torrada da moela de galinha(MG). MALEITA O mesmo que malária. Maleitado, com febre. Além de remédios, encontramos uma simpatia engraçada para afastar ou queimar a maleita. Querendo proteger-se da doença, a pessoa leva na cabeça um feixinho de gravetos até uma encruzilhada. Lá prepara uma trempe como se fosse uma fogueira e diz três vezes:Maleita, fica aí que eu vou buscar fogo pra fazer café para nós. Depois afasta-se sem olhar para trás, que a maleita ficará presa entre os gravetos.12 PREGO O gesto mágico de bater um prego numa árvore para livrar de febre, dor de dente e hérnia, já existia na Europa antiga precristã e perdura até hoje. Conforme uma simpatia tradicional em Betim(MG), para diminuir o umbigo grande da criança, a mãe deve bater um prego novo num cupim. Na medida que o prego some pela ação do cupim, o umbigo vai diminuindo. PROTEÇÃO Plantas como espada-de-São Jorge e guiné são usadas como simpatia e protegem moradias e locais de comércio de maus olhados e outros fluidos maléficos. [Image] R E Z A : Em Araçuaí(MG), registrei umas 2500 rezas. Boa parte serve para curar doenças. Muitas para quebranto. Outras tantas para estancar sangue numa ferida, para engasgo, para dor de dente, dor de pontada, para lombrigas, para cobreiro, para íngua e muitas outras. Algumas orações não podem ser reveladas. Algumas são preventivas, como a oração de São Bento para cobra não ofender. No nosso contexto, o benzimento ou a bênção é um ritual de cura. Há benzimentos para doenças específicas e outras que servem para qualquer doença. Por ex., faça um sinal da cruz e diga: Eu te benzo pelo nome que te puseram na pia, em nome de Deus e da Virgem Maria, e das três pessoas da Santíssima Trindade, eu te benzo. Deus nosso Senhor que te cura, Deus que te acuda nas tuas necessidades. Se teu mal é quebrante, mal invejado, olhos atravessados ou qualquer outra enfermidade, se te deram no comer, no beber, no sorrir, no zombar, na tua formosura, na tua gordura, na tua postura, na tua barriga, nos teus ossos, na tua cabeça, na tua garganta, nas tuas lombrigas, nas tuas pernas. Que Deus Nosso Senhor que há de tirar, vem um anjo do céu, deita no fundo do mar onde não ouça galinha e nem galo a cantar.Faz-se uma cruz em cima o copo e reze o credo três vezes, na segunda vez reze um PN à Santíssima Trindade e na terceira vez uma Salve Rainha a Nossa Senhora. Faça essa oração três dias seguidos. Antes do benzimento colocar um copo com água e depois dar para a pessoa beber.(Casa Branca.SP. 1994) No ritual da cura, não se separam corpo e alma. Não é possível salvar somente a alma ou apenas o corpo. Por isso, é possível estar com o diabo no corpo. E até: deitar a alma pela boca. Nas doenças amarram um cordão de orações no corpo, oferecem no santuário o peso do corpo em cera. Numa oração para parto e numa outra contra lombrigas, anotam-se numa tirinha de papel as letras iniciais da oração, para serem engolidas. Muitos trazem no corpo as marcas do sofrimento, da seca, da violência, da pobreza, da doença. Para ficar invulnerável contra todos os males e perigos existem os rituais para fechar o corpo. Algumas fórmulas de rezas são tão antigas que suas origens seguramente se encontram na mitologia germânica ou céltica do início da história da Europa pré-cristã. Temos o exemplo da reza de izipa, encontrada num código austríaco do séc.IX, ainda na época da cristianização da Europa por Carlos Magno:Do tutano deu no osso, do osso deu no nervo, do nervo deu na carne, da carne deu na pele, da pele foi para as ondas dos mar etc, etc. Mas, mesmo assim, as rezadeiras se adaptam aos tempos modernos. O micróbio já entrou na oração contra dor de dente. O gelo na bênção da carne quebrada. Duas formas de oração ligadas às curas: - A oferta do ex-voto, objeto de cera, madeira, prata e outros materiais, em forma de cabeça, perna, peito e outras partes do corpo humano: ou então, muletas, pinturas, fotografias, miniaturas, para pedir e agradecer curas, proteção divina em perigos, graças alcançadas ou outra experiência religiosa. Os ex-votos ou ‘milagres’ são deixados em santuários de romaria. - O exorcismo ou esconjuração. Em nome de Deus e através de rito ou palavra dominar e expulsar um espírito mau e os vermes de doentes, possessos de demônio ou encosto. O exorcismo tem como resultado a cura, a reconciliação e o perdão, enfim, a salvação. Hoje usado frequentemente nas igrejas pentecostais e no movimento carismático católico. Grandes epidemias históricas deixaram suas marcas na oração pública. Vários benditos de São Sebastião, São Barnabé, e de São José falam em “peste, fome e guerra”. Especialmente os cantos de penitência. Muitas destas coisas tem origem portuguesa e devem ter surgidas nas epidemias, crises de fome e nas guerras de reconquista e cruzada acontecidas em Portugal. Crises de fome em Portugal aconteceram em 1202, 1310, 1333-1334, 1521-1522, 1597, 1655, 1659. O ar é um dos quatro elementos e está muito presente nas bênçãos. Vejamos a oração contra mal-de-vento-excomungado(ou: ar bravo), em Ponte Nova(MG): Vento maldito vento excomungado Nosso Senhor não te quer aqui. Nossa Senhora há de ti tirar. Nossa Senhora há de ti levar. Ou então: Vento mau excomungado, vento maldito, vento que Nosso Senhor não deixou no mundo, Se é na cabeça, São Anastácio tira. Se é nos olhos, Santa Luzia tira. Se é no nariz, Santa Iria tira. Se é na boca, Nossa Senhora tira. Se é na orelha, São Francisco tira. Se é nos braços, santa Cruz tira. Se é no corpo, Senhor dos Passos tira. PN. AM.13 Uma oração contra queimaduras menciona três do quatro elementos: O fogo não tem frio, a água não tem sede, o ar não tem calor, o pão não tem fome; São Lourenço, curai estas queimaduras pelo poder que Deus vos deu. Fazer o sinal da cruz e oferecer um PN para São Lourenço.14 A oração vem junto com o remédio: folhas machucadas de abóbora colocadas em cima da queimadura. Há quem cura queimadura com cuspo. Existem alguns rituais de cura que colocam o tratamento encrustrado na oração, isto é, reza parte das palavras antes e outra depois. Por ex., quando se vê que um parto será difícil reza a Salve Rainha até “nos amostra” e quando a criança nasceu continuam “o bendito fruto do vosso ventre Jesus etc”. A verdade cura. É importante observar de que maneira algumas grandes verdades aparecem em orações para curar, juntamente com a fórmula: Assim como isto verdade é, etc.. Concretamente, numa bênção de mau-olhado: <...> Jesus Cristo mente? Não Jesus Cristo não mente! Assim como Jesus Cristo não mente, este mal não vai adiante. Da mesma forma usam a verdade: Maria é Virgem, na oração contra a moléstia do tempo. E para curar bicheira afirmam: Trabalhar no domingo não vai para frente; Quem come e não reza, não se salva; Limpas ficaram as cinco chagas de Nosso Senhor; e: Quem come e não reza, não se salva. Rezam: Assim como trabalhar no domingo não vai para frente, esta bicheira não vai adiante. Cai de um em um, cai de dois em dois etc. O assunto é rico e estenso. Aqui apenas lembramos alguns elementos importantes.[Image][Image]Capítulo: 5.C O N C L U S Ã O Na cultura popular a cura implica num ritual: uma oração no sentido amplo, que não contradiz a simpatia, nem o remédio. A reza, a simpatia e o remédio formam o sagrado, o sábio e o competente tripé da medicina popular. No tratamento popular, remédio, simpatia e reza não se separam no tratamento da pessoa doente. Por fim, fica a pergunta: o que fazer com os valores da Cultura Popular na nossa medicina, na nossa vida, na nossa ciência? Duas coisas são certas: · É minha convicção que ainda sabemos muito pouco sobre a vida e a religião dos pobres. · Quando nos defrontamos com a espinela caída e outras coisas curiosas da medicina popular, temos vontade de rir e de considerá-las inúteis, porque não tem sentido para nós e não combinam com nossas teorias. Aí, eu lhes pergunto: quando finalmente vamos pensar a partir do outro que é diferente. Precisamos tentar conhecer sua história e realidade. Os remédios, as simpatias, as rezas fazem parte do agir coerente dos pobres do Brasil.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:1. ALVES, Paulo César Borges. "A Dimensão Social da Doença no Jarê." In: Cadernos do CEAS. Nº150. Março/Abril, 1994. p.70.
2. DINIZ, Pompílio. Poemas. Goiânia, 1987. p.55-58(citamos apenas 7 versos).
3. LACERDA, Regina. Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro, Funarte, 1978. p.60.
4. CÉSAR, Getúlio. Crendices no Nordeste. Rio de Janeiro, Ir.Pongetti Ed., 1941. p.66.
5. Registrado por: Maria José Esteves. Divinópolis(MG), 1973.
6. Informante: Irene França dos Santos, abril de 1984. Apud: Souza, José Evangelista. Pe. C.M. Raízes e Histórias. Vol.I. Petrópolis, Vozes, 1989. p.53.
7. Jornal Previcaixa. Out/1993. p.2.
8. Registrado por: Míriam Edinée Leodoro. Divinópolis(MG), 1973.
9. Livro cujo título completo é "O non plus ultra do Lunário e Prognostico perpétuo geral, e particular para todos os reinos e provincias." Composto por Jeronimo Cortez Valenciano. Emendado e traduzido em português por Antonio da Silva Brito. Lisboa, Typ.de Matias José Marques da Silva, 1858. A primeira edição em português é de 1703. Em 1594 saiu a primeira edição em castelhano.
10. Porantim. Ano XIII Nº136.(Brasília.Março/1991) p.11.
11. ROMERO, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro, José Olímpio Ed., 1954. p.678.
12. NEGRÃO, Walter. et alii. Rezas, benzeduras, simpatias. São Paulo, Ed.Três, sem data. p.413.
13. MERHEB, Alice Inês Silva. Sol e chuva ... Casamento de viúva. Viçosa, U.F.V., 1976. pp.34-35.
14. AZEVEDO, Téo. Plantas medicinais, Benzeduras e Simpatias. São Paulo, Global Editora, 1984. p.172.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Medicina Indígena Brasileira: Comparação entre o Saber dos Pajés e a Medicina Antroposófica

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por Wesley Aragão de Moraes

INTRODUÇÃO

Uma grande missão da antropologia é conhecer o outro, o diferente, para que, assim, possamos saber de nós próprios. Auto-conhecimento também é, de outra forma, uma proposta da antroposofia. Saber, para ajudar é uma meta do médico. No Brasil, vivemos uma situação cultural peculiar, multicultural, onde isto é especialmente possível, onde outros e nós se confundem e se mesclam. O raciocínio darwinista do século XIX era simplista ao afirmar que o índio é portador de uma consciência “atávica”, arcaica, ainda espiritualizada, enquanto o branco vive na luz da consciência da modernidade. Na verdade, índios e brancos convivem no mesmo mundo, o atual. Cada qual, por uma trajetória distinta, foram lançados na “época da alma da consciência” (Steiner) e cada qual procura sobreviver física e espiritualmente nesta, dentro das opções e contextos de que dispõem – pois caracteriza justamente esta época a multiculturalidade globalizada. Por isto, cada um pode dar algo do que tem de melhor ao outro, compondo assim novas propostas de vida.

Os povos indígenas e seu legado não são páginas do passado, mas, ao contrário, continuam presentes e aumentando sua população. A Antroposofia se propõe a ser uma via contraposta ao materialismo moderno, falando de um mundo todo-espiritualizado no qual vivem os indivíduos. As cosmovisões indígenas, por outro lado, tem sua trajetória à parte do processo que produziu a modernidade ocidental, até a colonização. A partir daí, as etnias indígenas passam a se integrar/confrontar, de modo brutal, com a modernidade (“era da alma da consciência”- Steiner), tornando-se, destarte, parte dela. Temos assim, uma situação peculiar, onde cosmologias míticas e animistas convivem e se inserem e são inseridas num mundo materialista, individualista e capitalista. Por outro lado, antroposofia e cosmologias ameríndias tem em comum a noção de um mundo encantado e permeado de essências suprassensíveis. A primeira, situa-se no contexto de indivídualismo ocidental europeu – na cidade-, as últimas, no contexto da comunidade tribal dos trópicos – na aldeia da floresta. Polaridades e afinidades…

O Xingu é um fenômeno espiritual único no mundo. Lá convivem, há mais de mil anos – conforme dados arqueológicos – pelo menos quatorze povos diferentes, falando línguas diferentes e de origens diferentes. Cada qual tem suas próprias aldeias, seus próprios valores, e se comunicam pacificamente e trocam bens de uma forma harmônica. Segundo os nativos, isto se deve à presença próxima deMavutsini, ser solar criador, que vive na região e os direciona. O Xingu se situa exatamente no centro do Brasil e da América do Sul. Isto nos faz pensar…

Tenho, já há alguns anos, trabalhado e estudado a etnobotânica medicinal indígena e as práticas rituais e concepções de cura de índios, basicamente pertencentes ao grupo lingüístico Tupi-Guarani2) – principalmente, os guarani (região sudeste do Brasil) e os kamaiurá (Xingu, MT, região centro-oeste). Aprendendo aos poucos sua linguagem, convivendo e visitando estas culturas, assistindo às suas práticas de cura, verificando suas ervas mágicas e curativas, lendo os relatos de cientistas naturais e de etnólogos a respeito, formei assim alguns elementos teóricos e observações, os quais procuro compartilhar com os interessados.

A COSMOVISÃO CURATIVA INDÍGENA

Impossível entendermos a medicina indígena sem termos uma noção de sua cosmologia.

De uma forma generalizante, como uma síntese, podemos reunir todas as cosmologias dos vários grupos de fala Tupi-Guarani em uma só grande cosmologia, a partir de seus elementos comuns. Esta síntese já foi esboçada pelo etnólogo Metráux(3) , nos anos 50.

O Mundo Espiritual

Para os índios tupi, o mundo sensível é somente uma parte de uma totalidade ternária que inclui também um mundo suprassensível espiritual e também um mundo suprassensível anímico. O mundo espiritual é habitado pelos deuses criadores (tais como o Monan,ou Mayra, tupinambá; o Nhanderu – “nosso pai”- guarani; o Mavutsini xinguano), pelos heróis culturais (os seres gêmeos-planetários que criaram animais e plantas e outros heróis míticos) e pelos espíritos dos humanos (Ayvu, em guarani; Mái, em araweté; E’ami, em juruna).

O Mundo Anímico

O mundo anímico, distinto do mundo espiritual, intermediário entre este último e o mundo sensível, é habitado pelas almas dos mortos (Anhang em guarani e em kamayurá; em tupinambá, ang-uera – alma sem corpo; I’nay, em juruna; Ani, em araweté). Diferente dos espíritos, as almas dos mortos são mortais tanto quanto nossos corpos. Elas sofrem uma “segundamorte” que é representada de forma imaginativa: Os Kamayurá dizem que as almas sofrem um ataque de pássaros vorazes que as vão devorando, devorando, até que elas chegam diante do Uirapy, o grande gavião celeste, que as devora totalmente. Os Araweté dizem que as almas são devoradas pelosMái, deuses, num banquete antropofágico celestial. Depois de devoradas, entretanto, os deuses as refazem em um enorme caldeirão e elas ressurgem lindas, renovadas, rejuvenescidas, metamorfoseadas em Mái(4).

Para o indígena, portanto, a entidade humana compõe-se de uma parte física, visível – a “pele”(Py), em kamaiyrá, termo que também pode ser traduzido por “vestimenta” ou “forma”. Morrer (manon) é “deixar a vestimenta e ir embora”. A “veste” é animada por uma entidade considerada material, que se separa do cadáver após a morte e fica em torno da tumba, assombrando os vivos que por ali passarem. Esta entidade etérica (anguery, em guarani) dissolve-se com o tempo ou pode ser dissolvida pelo pajé. AAnhang-Alma, por sua vez, é dotada de uma natureza animal. Assim, é comum entre os guarani que se diga “tal pessoa é agitada porque sua alma é de jandaya”, ou “ele é raivoso porque sua alma é de onça”, enfim. Animal e homem tem continuidade, são unos, através do Anhang. O Ayvu (Lógos), Espírito, é a “alma-estrela” e vive na Terra-sem-Mal, podendo reencarnar de vez em quando, para os guarani(5). Para os Kamayurá, o espírito ilustre torna-se um tipo especial de mamaé superior não selvagem. Temos, destarte, uma quadrimembração:

1- Forma Física, “Pele”- Py 2- Duplo etérico do corpo - “Anguery”

3- Corpo Animal – “Anhang” 4- Espírito - Ayvu, Mamaé

Conforme o arque-mito tupi da Criação, Monan-Maýra(Mavutsini no Xingu) estava só e então desejou fazer os humanos, a partir de troncos de árvore. Fez mulheres, primeiro, sua filhas. E depois mandou que elas se casassem com a raça dos jaguares míticos –seres titânicos muito ferozes, seres do caos. Deste casamento das filhas de Monan com as onças é que descendem todos os homens e mulheres. Por isto temos uma essência divina, Ayvu, e Monan é nosso avô celeste, e somos – como dizem os Araweté(4), “deuses esquecidos aqui na terra”. Por outro lado, todos nós temos “sangue de jaguar”, somos filhos da Onça Primordial, e por isto guardamos parentesco com toda a ferocidade predatória e canibal que a natureza apresenta.

SERES ELEMENTAIS, MAMAÉS

Reluto em revelar um magno arcano.

Tronam deidades em augusta solidão.

Sítio não há, tempo ainda menos, onde estão.

É um embaraço falar delas. São as Mães.

(…) Estranho é mesmo; Deusas ignoradas

De vós mortais. Por nós, jamais nomeadas.

Vai, pois, buscá-las nos mais fundos ermos;

É tua culpa o delas carecermos.

(Goethe, Fausto I)

O mundo anímico também é habitado pelas “Mães”, criaturas geradas pelos deuses, mas pertencentes a uma hierarquia inferior, e que regem ou guardam, ou animam, ou vitalizam, seres vivos e fenômenos naturais. No Xingu, os Kamayurá denominam estas Mães pelo etnônimo Mamaé. Os índios Yagua, da Amazônia Peruana, distinguem, no Cosmo, as Hamwo(Mães). Uma floresta, com imensas árvores, arbustos, cipós, rios, peixes, pássaros, mamíferos, répteis, é cheia de “mães”(6). As Mães são forças viventes e animadoras dos seres, e também fontes de sabedoria cósmica, mestras dos xamãs. As Mães mais poderosas são aquelas que animam as “plantas fortes” (as que são mágicas, psicodélicas) e a certos animais – como o jaguar, os veados, a lontra, etc.. As Mães podem se manifestar aos homens sob diversas formas, diversas aparências, com cores e aspectos específicos para cada tipo. As cores, como experiências visuais privilegiadas, assinalam qualitativamente as Mães. Também elas assumem aparência teriomorfa (serpente, pássaro, jaguar, borboleta, tapir, minhoca, etc.), ou antropomorfa, ou de fenômenos (vento, fogo, água, etc..) e tem, conforme os índios, “velocidades” distintas. Entre as diversas culturas indígenas, estas “Mães” podem ser descritas não necessariamente como entidades femininas, pois a concepção indígena de espíritos da natureza transcende, neste caso, os gêneros. Daí é que temos em nosso folclore expressões como “mãe d’água”, “mãe do ouro”, etc..

As “Mães” são aquilo que Steiner denomina “entidades elementais da natureza”. A nomeação destas entidades, em Steiner, provém das tradições folclóricas e esotéricas européias e se contrapõe a uma noção materialista de natureza inanimada e mecânica. A existência e a interação com equivalentes americanos destas entidades são vigas-mestras da concepção indígena de saúde, doença e cura. Os Mamaé ,dizem os Kamayurá, foram criados por Sol e Lua e não vivem para sempre, um dia desaparecem, “vão como o vento”…Estão em tudo que é vivo.

Os “elementais” aqui do Brasil indígena não obedecem tão clara e simplesmente à concepção quaternária européia, colhida pelos folcloristas irmãos Grimm, de seres do fogo, do ar, da água e da terra (salamandras, silfos, ondinas e gnomos, respectivamente). Aqui, estes seres são concebidos como multiformes, constituídos de uma infinidade de tipos e de formas, em geral antropomórficos, mas também zoomórficos, ou mesclados entre algo que lembra o humano e algo que remete ao animal, geralmente envoltos em roupagens vegetais. Como os elementais europeus, os daqui não são bons nem maus, mas neutros – embora possam atuar num ou noutro sentido. Não são “demônios”, como interpretaram os jesuítas do século XVI. Antes, seriam forças irracionais, inconscientes, amorais da natureza, ligadas aos processos de vida e de morte. Alguns deles são “ogros”, seres predadores e canibais da floresta, descritos como “anões dotados de dentes pontiagudos, enormes corcundas e que exalam fedor” – não são essencialmente maus. Outros são descritos como lindas cunhãs enfeitadas, ou anões ctônicos, ou seres aquáticos ou alados…Nas festas indígenas, tais seres são invocados e celebrados – através de máscaras que os representam- para que convivam em paz com os humanos. Seriam manipuláveis pelo homem. Todo pajé tem um ou mais de um mamaé ao seu serviço. O indígena não concebe nada que se assemelhe ao ‘diabo” ocidental – o mal absoluto personificado. O “anhangá” visto como o diabo é uma deturpação dos jesuítas (originalmente seria um fantasma, uma assombração). Destruição, predação são contra-faces da Vida, e não o mal. Mesmo o mamaé kamayurá mais temido, Anhang.ú, não é mau, é selvagem como um jaguar, indomado, assustador, faz barulhos na mata e pode atacar. Por outro lado, “Tupã” nunca foi o Deus Supremo dos tupis, mas o elemental do trovão e do raio, entre outros elementais do panteão tupi. Steiner, por sua vez, afirmava que os “elementais são libertados pela cultura humana, desencantados pela espiritualização cultural dos elementos naturais”(7) – canto, dança e manufatura humana os libertam, ou seja, os retiram de sua condição “selvagem” e os remetem à uma condição domesticada, humanizada. Quando uma árvore morre, é porque seu mamaé se esvaiu, se retirou. Tornada uma canoa, ele se espiritualizou.

Estas entidades elementais da natureza, na cosmovisão indígena, geralmente estão associadas ou em íntima interação com as almas dos mortos (Anhang). Os Araweté dizem que as almas defuntas, ou antes os duplos dos corpos, são carregadas pelosAni, elementais do interior da terra, de aspecto cadavérico, que vivem cercados de ossos e de podridão – detestam tudo que é vivo. Neste reino, tais almas serão entregues à Avó-Terra, grande entidade canibal que as devorará(4). A presença constante e perigosa das almas dos mortos, interferindo com o cotidiano dos viventes, é outra viga-mestra da cosmovisão indígena. As almas dos mortos não sabem que estão mortas e perambulam pelo espaço físico, impalpáveis, tentando sugar a vitalidade e a alma dos vivos, pois sentem frio e fome – conforme descrevem os índios. As diversas etnias indígenas criaram rituais – como o Kuarüp xinguano, para afastar e apaziguar as almas dos mortos, para que elas não ofereçam perigo para os vivos. Somente quando se tornam espíritos, as almas passam a ter uma função produtiva no Cosmos – o que também afirma Steiner. Eu diria, portanto, que o indígena desenvolveu, ao longo de milênios, um complexo conhecimento empírico de interação para com aquilo que os antropósofos classificam como “seres elementais” e como as almas dos mortos. “Natureza”, para o indígena, seria a expressão desta sobrenatureza, e não a natureza materializada concebida pelo iluminismo ocidental. Animais e plantas são inseridos na dinâmica do invisível, e são seres participantes de uma ordem espiritual inteligente. O indígena compreende que as várias entidades devem manter, para com os vivos, um certo equilíbrio de forças, uma condição de harmonia – que depende em muito da atitude dos viventes – e que esta interação entre planos visível e invisível é que determina a saúde, a doença, as colheitas, as chuvas, os ventos, a fertilidade da terra, a boa caça, a boa pesca, o uso das plantas mágicas e medicinais, a eficácia dos rituais, das danças e dos cânticos, etc…

MÚSICA E SONHOS: ELEMENTOS CÓSMICOS

Os índios Kamayurá, repetindo uma noção generalizada entre todos os índios das três Américas, afirmam que os espíritos, as almas e os mamaé são feitos de música (maraká), e que o elemento sonoro-musical é a via de comunicação, por excelência, entre os que estão sob a condição de mortais e os seres invisíveis. Daí a enorme importância da música e da dança para os índios. O pajé é necessariamente um cantor (marakaút), um dançarino (peaporahai) e um compositor, embora toda música e todo canto terrestres sejam apenas imitações imperfeitas de músicas e de cantos que são ouvidos no mundo anímico-espiritual, durante os sonhos. Um pajé acorda de manhã e anuncia à aldeia toda: “Esta noite sonhei e o espírito tal me deu este canto” – e se põe a cantar…Os instrumentos musicais – chocalhos, flautas, zunidores, instrumentos de percussão, etc. – são todos invenções toscas que tentam reproduzir os instrumentos verdadeiros (marakatap-aeté) que existem somente no mundo suprassensível. Um pajé me deu uma flauta de taquara de presente e me disse: “Esta flauta é falsa.” Meio perplexo, perguntei por quê ele dizia aquilo. Ele disse: “Porque a flauta verdadeira está com um mamaé, esta é só imitação”.

O mundo físico, também entre os guarani, é produto do Neen’g, o Verbo dos deuses. A Fala é o elemento criador. O Mavutsini xinguano criou gente a partir de dança, música e canto. Esta relação arquetípica do Verbo com a Criação é também uma das bases daantroposofia.

O sonho é outro elemento fundamental, aliás, para a comunicação entre o sensível e o suprassensível. O índio não reconhece uma descontinuidade entre sua vida cotidiana terrestre e aquilo que se passa quando ele sonha. O mundo dos sonhos é, portanto, também o mundo das almas, dos espíritos e dos mamaé. Cantar, fazer música e dançar são reproduções sensíveis do elemento dos sonhos. Ouvir as histórias sagradas também é remeter ao mundo musical do sonho. Steiner também diz, muitas vezes, da relação entre os sonhos e as realidades anímicas-espirituais.

PLANTAS MEDICINAIS

Os pajés, curadores por excelência, atuam, assim, a partir dos sonhos e a partir da música. Seu diagnóstico das doenças, o prognóstico e o tratamento escolhido – rituais, banhos, beberagens à base de misturas de plantas, etc. – vai depender do que seja revelado pela música, pela fala cantada (kewére, a prece) e pela dança. O grande veículo mercurial que liga os atos xamanísticos do pajé ao suprassensível é o tabaco, o fumo. Em geral, utilizam-se variedades exóticas de tabaco (Nicotiana rustica e outras), diferentes do tabaco industrial, e misturas de ervas diversas, cujas folhas são secas e preparadas sob a forma de um charuto – o Petüm(origem do termo “pitar”).

Na mata atlântica, um pajé me mostrou uma determinada planta – imeneop – à qual ele atribui o poder de curar esta doença de brancos denominada diabetes –o que foi a ele revelado por seu mamaé. É uma planta oleoginosa, que exala um perfume fortíssimo, e que, conforme o mito xinguano, foi usada por Mavutsini para perfumar e firmar a forma original do ser humano recém-criado. Colhi a planta, levei-a ao departamento de botânica da universidade para sua identificação: Siparuna guianensis, da mesma família do Peumus boldus, monimiáceas. É desconhecida sua ação anti-diabética, até então, mas se sabe que tem princípios ativos antiofídicos, anti-oxidantes e anti-inflamatórios. A observação goetheanística revela uma planta que irradia uma atmosfera de calor em torno de si, de folhas generosas e bem desenhadas, frutinhos vermelhos que lembram o café maduro. Isto aponta para o organismo calórico humano, para os processos térmicos que permitem a encarnação de eu – conforme a linguagem antroposófica. Como a planta tem baixa toxicidade, passamos a utilizá-la clinicamente, testando sua eficácia na diabetes do adulto, em preparados dinamizados. Da mesma forma, temos seguido este procedimento em relação a inúmeras outras plantas nativas.

Em termos antroposóficos, dir-se-ia que as plantas dotadas de forte astralidade e cheias de alcalóides, como o tabaco, ou o paricá (Anadenanthera peregrina), tornam-se mediadores entre o mundo sensível e o mundo anímico-elemental – uma vez inseridas no corpo dos pajés. O objetivo destas plantas é o da indução de estados alterados nos pajés. Todavia, os mais experientes deles alteram seus estados de consciência simplesmente pelo canto e pela dança. As plantas que exalam óleos voláteis, sendo, portanto, odoríferas, são geralmente utilizadas como plantas de limpeza ou como capazes de reconstruir limiares rompidos entre pessoa e mundo (“fecham o corpo”) – como, por exemplo, aSiparuna guianensis. Um pajé kamayurá me disse algo típico: “As plantas são maraká (música) e cantam o tempo todo. Tratar com plantas é o mesmo que o tratamento com cantos e instrumentos”. A harmonia musical das plantas reorganizaria e exorcizaria as desarmonias da musical e orquestral alma humana. As plantas são consideradas dádivas primordiais de Kwat, o Sol, foram deixadas na terra pelos deuses quando partiram. Os animais, por outro lado, não são música, mas são feitos de Ne’eng (fala) – mais terrenos.

O espaço aqui não permite uma explanação ampla doCaá-Nhemoé – o ensino das plantas Tupi. O índio tem uma intensa relação com o vegetal. Faz sal de aguapés e de palmáceas; faz arcos e flechas, casas, redes, transforma mandioca venenosa em comestível; faz venenos para caça e pesca, pigmentos e temperos, e remédios. Os Guarani, como os Kamayurá, possuem a noção de que a planta é um ser solar, algo espiritual, que tem relação com o mundo musical cósmico. O Sol em pessoa ensinou aos primeiros homens quais os cantos que deveriam ser entoados quando se colhem medicinais/" title="View all posts filed under ervas medicinais">ervasmedicinais. Os elementais das plantas, através de cantos, são invocados e atiçados contra os elementais canibais da doença(8). Muitas vezes, o elemental da planta é o mesmo elemental causadorda doença: o selvagem contra o domesticado (umahomeopatia xamânica). As plantas precisam ser “acordadas” através da musicalidade. Se não acordada, a planta é somente “forma”. O antropósofo diria que o indígena enfatiza as essências etérica e astral das plantas, mais que sua forma física. Colhidas, as plantas podem ser usadas sob a forma de banhos (Okutsinok, limpeza, em kamayurá), ou infusão (muanarip), ou vapor (omuiauk), ou como colar (ypohüt). Também existe a técnica de se raspar a pele e se aplicar sobre o local o cataplasma da planta (oyait). Algumas plantas de minha pesquisa são: Uuitang (Myrcia selloi), que tem um córtex adocicado, sendo a raíz tanínica usada para gargarejos e anti-inflamatória, também de “limpeza”;Depopsiatã (Helicteres guazumaefolia), usada para diarréias, tanínica; Yaukap (Eupatoria sp.), cuja raíz perfumada é usada também para “limpeza”; Yacaré-aruái (rabo-de-jacaré, epífita não identificada), que é excelente para mialgias, aplicada sobre a pele escarificada; Mutuhuku (Tibouchina sp), melastomácea excelente para pneumonias e bronquites, usada como emética; Matawi (Xilopia brasiliensis), grande árvore ammonácea, com ela se fazem as toras das ocas dos caciques, cheia de óleos aromáticos e alcalóides, usada para doenças da pele e “limpeza” (banhos) e para enxaqueca.; Urapahán (Cecropia sp), usada para estimular crescimento infantil; Mamaé-Areá (Dichondra microcalix), para sonhar bem; e muitas outras. O grande segredo indígena é a mistura de ervas, produzindo, assim, combinações novas que tem efeitos inéditos aos efeitos de cada planta isolada. O branco pensa nas plantas isoladamente.

OS ÓRGÃOS INTERNOS, OS PLANETAS E O COSMO INDÍGENA

Para o pajé Kamayurá, como típico tupi, os órgãos anatômicos se confundem com funções anímicas. Um órgão interno e sua fisiologia não é imaginado como “carne inerte”, ou como algo mecânico, mas como expressão ou parte das atividades psíquicas de homens ou animais. O coração (Ye-rowé – meu coração) é a atividade afetiva da alma; o pulmão (Ipotsiá) se confunde com a “respiração” e a sede doneeng, a palavra-entendimento tornada corpo; o fígado (peré ) e os rins (üke-aü) são instâncias anímicas de consciência que devem ser guardadas de “infecções” causadas por mamaés ou anhangs. O sangue é espiritualizado. Segundo um antigo mito tupi, a Via Láctea se formou através do espirro de gotas de sangue de heróis divinos. Os órgãos sexuais são vistos como algo de fora que foi incorporado aos homens e mulheres. Um mito Juruna conta que o pênis ficava chorando, chorando, querendo a vulva. Só parou de chorar quando puseram os dois juntos. O Criador juruna então resolveu por tais órgãos entre as pernas humanas. A anátomo-fisiologia indígena é inseparável da sua psicologia, e descritas por imagens e mitos.

Os índios do Xingu constróem suas aldeias conforme uma planta circular, estando a “casa dos homens” no centro do círculo. O céu estrelado, aparece como uma gigantesca cúpula de planetário natural. Toda a aldeia é orientada conforme as direções do poente e do nascente, norte e sul, planetas, estrelas e constelações recebem nomes mitológicos – incluindo os espaços escuros do céu. São seres míticos que desfilam “pelo espaço interno da aldeia”, diariamente. Assim, toda a aldeia, embaixo, é uma imagem especular do Cosmo, acima, e a sombra da casa dos homens, durante o dia, funciona como um gigantesco relógio. As constelações demarcam época de chuva e seca, época de plantio e colheita, época de festas, etc.(9). As estrelas alfa e beta do Centauro são os dois olhos brilhantes do Grande Jaguar, pai do Sol e da Lua, que nos fitam do céu. Os guarani reconhecem quatro diferentes qualidades cósmicas, irradiadas pelo norte, sul, leste e oeste – configurando quatro tipos de almas que descem à terra, cada qual ligada a um grande espírito e portadora de qualidades específicas que serão registradas em seus nomes e estarão visíveis em sua forma física. Nimuendaju(5)admitia que esta noção guarani corresponderia `a noção euro-ocidental de quatro temperamentos como resultantes de quatro qualidades de forças formativas cósmicas.

Na cosmovisão antroposófica de Steiner, os planetas são essencialmente forças que ordenam o cosmo interno do homem, configurando-o, “o homem é um cosmo planetário”.

Embora encontremos representações ameríndias – maias, astecas e incas – muito precisas a respeito do sol, da lua e dos planetas e astros (justamente entre etnias que tinham metalurgia, escrita e calendários complexos), as imagens astronômicas dos demais índios, até os atuais, é mais difusa e complexa de se decifrar. Os planetas estão lá. Sol e Lua são os gêmeos antípodas – Tanendonare e Aricoute , em tupinambá antigo, Kwaracy e Yaci, na língua geral –Kwat e Yaü, em kamayurá atual. Os outros astros são expressos como seres míticos, como animais sagrados, que exercem uma função cósmica definida. Aquilo que os antropósofos chamam por “arquétipos planetários” estão difusos, dissolvidos, fundidos, nos mitos indígenas atuais, no meio de personagens e espíritos. Há um contraste evidente, na imaginação indígena, entre um Cosmo ordenado pelos deuses –Monan, Sol e Lua – e as forças do Caos, jaguares primordiais, que tentam devorar tudo. As eclipses do sol e da lua são vistas como o canibalismo do Jaguar celeste, que devora sol ou lua – lançando o mundo no caos. Por isto, em eclipses, os pajés convocam as aldeias para ritos de resguardo. Nos eclipses, os mamaés e anhangs invadem o mundo dos vivos e causam distúrbios: Alterações no céu correspondem a alterações na terra. Conforme o mito tupi, foram justamente Sol e Lua que venceram os jaguares primordiais, instaurando a ordem cósmica no mundo (no microcosmo humano também, portanto, quando o ímpeto civilizador e ordenador do espírito humano supera o ímpeto canibal e de animal predador). Nadoença, o indivíduo é, portanto, possuído pelas forças cósmicas que tem parentesco com as forças do caos – forças canibais. São as forças canibais que, vaidosas, querem conquistar o Cosmo pelo devoramento e pelo ódio guerreiro. Sinais e sintomas, como febre, inchações, convulsões, dores, abcessos, etc., são interpretados como ação de mamaés selvagens, que seguem a lógica predatória dos jaguares primordiais, rompendo a ordem cósmica interna – a qual deverá ser restabelecida pelo pajé. Tais forças, dizem os índios do Xingu, regiam a alma dos antigos e atuais “índios bravos”, dos que eram canibais, dos brancos e de tudo que come carne(10). Cabe ao pajé restaurar a ordem cósmica – como fizeram sol e lua – curando o doente. O pajé transforma as forças do caos, do ímpeto canibal dos mamaé selvagens, em forças civilizadas (do sol e da lua) – como observou o antropólogo alemão Münzel(11). Mavutsini-Monan é o Criador, detentor da Imagem Arquetípica do Homem – pois ele fez gente dando-lhe olhos, pernas, braços, cabeça e adornos plumários conforme a sua própria imagem e semelhança. A força mais poderosa a qual um pajé recorre quando ameaçado por mamaés caotizadores é Ele, Mavustsini. Ele tem um “sol em seu peito, mas não é este sol do céu, é outro sol” – dizem.

A CONSULTA DO PAJÉ

Quando o médico antroposófico está diante de seu paciente, procura ver neste não apenas a forma física, mas também a dinâmica psico-espiritual do ser humano. A doença será vista como um processo que contém um significado existencial, ao mesmo tempo que é ruptura de um equilíbrio instável. Para o indígena curador, o paciente também é uma forma física e uma dinâmica psico-espiritual rompida em seu equilíbrio instável; sendo o doente afetado por três tipos possíveis de doenças: Doenças corporais,doenças de branco ou doenças espirituais. As primeiras são tratadas não pelo pajé, mas pelo “raizeiro”(Yapóayat) homem ou mulher que tem o conhecimento das plantas tradicionais. É um tipo inferior de pajé, cujo modo de raciocinar é tanto “alopático”, quanto “homeopático”. As doenças de branco (Karaib-auãn) são aquelas que os caraíbas trazem (como resfriado, sarampo, tuberculose, sífiles, Aids, por exemplo) e que eles próprios tem remédios(são produzidas por umas “coisinhas pequenas que ninguém vê”). As doenças espirituais são da alçada dos pajés. O diagnóstico e a distinção entre os tipos de doenças é feito pelo pajé ou se dá por eliminação. Podem fazer adoecer , ou matar, uma pessoa os mamaé ou as almas dos mortos. Mas isto acontece somente se a pessoa quebra alguma defesa e se expõe a algum interdito rompido. O pajé trata dasdoenças causadas por forças suprassensíveis que produzem manifestações corpóreas e/ou anímicas.

As doenças que o pajé trata são invasões dos mamaé ou dos mortos para dentro da dinâmica orgânica dos vivos – desde que os vivos tenham, antes, se aberto às tais influências. A alma dos vivos pode ser sugada, vampirizada e “roubada” por uma entidade elemental (mamaé), ou por um morto (Anhang), por exemplo. O paciente será visto pelos parentes como tendo ficado “abobado”, estático, ausente. Este é o quadro clássico de Soul Loss (em inglês, perda de alma), observado entre várias sociedades tribais, na África, na Ásia e nas Américas. Uma criança repentinamente ficou “autista”. O pajé é chamado, identifica qual elemental roubou a alma da criança, negocia com este elemental e devolve a alma. Os diversos elementais-mamaé produzem síndromes características que são identificadas e tratadas especificamente: Tal mamaé da água produz inchações; tal mamaé do ar produz tosses e dispnéia; tal mamaé de tal árvore produz dores abdominais; etc.. Um indivíduo vai cortar uma árvore. Não percebeu que esta árvore tinha um “dono”, um mamaé-da-árvore. Dias depois de cortar a árvore, o indivíduo adoece – sem saber por quê. Nenhuma erva ajuda na cura. O pajé é chamado. Ele vem ver o paciente, deitado na rede. O pajé sonha à noite ou tem uma visão depois de fumar seu tabaco: O paciente adoece porque cortou uma árvore que tinha “dono” – havia um elemental dentro da árvore. Este elemental o atacou, introduziu no corpo do paciente um pequeno elemental–canibal que desorganiza os humores do paciente. O pajé identifica o elemental-mamaé e sabe qual é o ritual apropriado a esta raça de mamaé, para afastá-lo do paciente. Antes disto, o pajé deverá retirar o mal, soprando tabaco, sugando a pele do paciente, cantando, e expulsando-o através de uma espécie de “passe magnético” que puxa para as extremidades a força intrusa. Alguns pajés costumam “materializar” o mal, exibindo-o na palma da mão, como um pequeno objeto escuro – que é logo desmaterializado através de uma baforada de tabaco. O doente ainda terá que ingerir determinadas plantas eméticas e purgativas, banhos e escalda-pés para ficar “limpo”(pipotsu) – pois a doença é vista como presença de uma ‘sujeira’ (Ywaú). O doente “se sujou” porque estava “fraco”, e deverá ser transformado em “forte”, pela ação do pajé.

Entre médicos antroposóficos, a interferência negativa dos mortos sobre os vivos geralmente não é tratada, embora uma hipótese que deveria ser pensada. A questão é remetida ao âmbito da medicina pastoral e à atuação do sacerdote. No Brasil, todavia, pacientes espíritas ou esotéricos podem procurar ajuda para este tipo de questão entre ajudadores mediúnicos urbanos.

Muitas pessoas são “feiticeiras” (moanaia’t – fazedorde mal), para o indígena. Não se trata só de uma atividade específica, mas de uma atitude pessoal. Uma pessoa muito raivosa, cheia de ódio, ciumenta, invejosa, movida por sentimentos e desejos ruins, torna-se moanaia’t. É uma pessoa que pode contagiar toda uma comunidade, pois torna-se produtora de males, semelhante a um morto ou a um mamaé irritado. Ela passa a invadir ‘energeticamente’ a vitalidade dos outros, produzindo doenças, epidemias e azares diversos. Em outros tempos, uma pessoa assim, reconhecida como tal, praticante, deveria ser morta. Uma das atividades do pajé é a de ser um neutralizador das pessoas feiticeiras. Ele deve dissolver o mal que estas pessoas produzem, identificar quem são estas pessoas e apontá-las. A medicação que o pajé utiliza não é escolhida por ele próprio. Primeiro ele deve dormir e sonhar. Sua alma, então, transforma-se em pássaro e faz o ovewé, voa para um dos cinco planos dos espíritos. Do outro lado, livre do corpo, o pajé fala com seu mamaé-guia – um xerimbabo(12) invisível que o acompanha desde que se tornou pajé. O mamaé-xerimbabo mostra ao pajé o que causou a doença e quais plantas ou medidas serão indicadas para o caso. De manhã, o pajé dirá que “sonhou” e que seu mamaé lhe mostrou qual é a planta medicinal e o que mais deve ser feito. Quando uma pessoa adoece grave ou freqüentemente, é porque precisa mais do que uma pajelança, ela precisa oieut – mudar de vida, oieré’p – transformar-se. Esta seria a cura completa.

Para o médico antropósofo, o elemento imaginativo, e também o inspirativo e o intuitivo, devem atuar em sua alma como um mundo de “musas”, de imagens e de insights – através de um vôo imaginativo. O seu xerimbabo é aquele elemento intuitivo, o daimonsocrático, o afluxo de intuições do espírito. Intelectualmente e vivencialmente, ele deve descobrir as forças curativas. De modo distinto do pajé, o médico poderá ver, descortinado ao seu olhar, as relações arquetípicas-curativas dos elementos. A terapia e os medicamentos lidam diretamente com as forças arquetípicas elementais e com o campo anímico que se torna seu palco de atuação.

CONCLUSÕES

Há uma convergência entre certas noções daantroposofia e certas noções nativas indígenas – espíritos da natureza presentes nas plantas, atuantes na cura e na doença, elementares produzidos pelas pessoas que atuam no meio social, a necessidade de transformação do indivíduo (noção esta perfeitamente clara para o indígena, que vive em sociedades anárquicas, sem governo, onde cada um é responsável por si próprio). A linguagem e o contexto são, entretanto, distintos.

Rudolf Steiner disse uma vez que há uma “linguagem invernal” (da racionalidade fria, da lógica linear, a qual estamos acostumados) e há uma “linguagem de verão”(imaginativa, mítica, mágica, pueril). Lévi-Strauss(13), antropólogo francês, chama à linguagem de verão “pensamento selvagem” e à linguagem de inverno, “pensamento domesticado”. Disse Steiner ainda(7) que o mundo sensível pode ser interpretado pela linguagem de inverno, que é cerebral, mas o mundo suprassensível só pode ser entendido pela linguagem de verão, que é a mesma linguagem que os mortos falam e a dos sonhos e mitos. Ele disse mais: que a antroposofia deveria consistir em transpor a linguagem de verão para uma compreensão pela linguagem invernal. Eu diria que os índios falam, predominantemente, uma linguagem de verão (embora saibam e tenham também sua própria linguagem invernal). E o drama do índio é o de ter sido lançado brutalmente no mundo predominantemente invernal do branco moderno, desde quando o colonizador chegou às Américas, há 500 anos. Por outro lado, o invernal branco moderno está constantemente buscando resgatar sua própria e obnubilada natureza de verão (a existência de antropósofos que acreditam em gnomos, de arte e de religiões no mundo moderno é uma evidência disto).

Que afinidades ligam antroposofia e pajé? O pensar pelo verão. Primeiramente, a noção de que muitasdoenças decorrem de uma condição não somente intra-orgânica, pois a organização humana não pode ser isolada de contextos cósmicos do entorno. Adoecemos por causa da qualidade das interações que os diversos níveis do nosso ser realizam com os diversos níveis do Cosmo. Entre estes níveis do entorno cósmico, também devemos situar as nossas relações sociais e afetivas – todo ser humano é potencialmente feiticeiro, produtor de elementares negativos, capazes de “sujar” a psiquê e a vitalidade própria e dos outros. O índio tem, assim, a noção de uma “ecologia’ do espaço psíquico e vital. Outra coisa que poderíamos ver em comum é que desta interação homem e forças da natureza, uma vez enfraquecida a organização e a estrutura interna do primeiro, as últimas invadem, atacam, afetam e infectam o microcosmo interno do homem. Como pode o terapeuta ajudar cada paciente a manter seu “corpo fechado”? Outra coisa ainda é que melhor do que plantas, remédios ou pajelanças é o oieré’p, transformar da pessoa para uma condição melhor e mais ampla de vida. Há causa possível de doenças em cortar uma árvore, sentir raiva ou medo, ter inveja ou ciúme, adentrar-se ou derrubar uma mata, entrar num rio, sujar um rio, passar por determinados lugares habitados por “mortos” ou por “mamaés” – pois suprassensível e sensível se imiscuem inseparavelmente num Todo e o ser humano interage com isto. O espaço físico é também um espaço animado, vivente, habitado por forças dotadas de desejos e de certo nível de consciência. Euritmistas antropósofos fecham as janelas para que elementais não interfiram. Índios fecham suas ocas, à noite, para que mamaés não entrem. Estamos imersos neste espaço. Para o índio, o mundo é feito de música, desonoridade, sonoridade que segue leis cósmicas de criação e de predação. Quando Monán, o Criadortupinambá, ou Mavutsini, o Criador kamayurá, fez os homens, os fez de troncos de árvore, mas os dotou de vida e de alma cantando e dançando – caso contrário seriam inertes como rochas. Depois, vieram os gêmeos míticos, filhos de Monán-Mavutsini, e criaram animais, plantas, águas, estrelas e tudo mais, sempre cantando, soprando, dançando. Vivemos assim, conforme o índio, num mundo animado e dançante, encantado – um mundo de verão – que tentamos decifrar invernalmente…

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